Comida Invisível, um projeto de arregaçar de mangas!

A gente nunca entendeu como este 1/3 pode ir para o lixo. De todo alimento. Não faz sentido. Da semente ao prato, há um percurso longuíssimo a ser percorrido. E, claro, o consumidor tem papel fundamental na história. Se consciente, revoluciona o mercado, gera demanda e contribui ao desenvolvimento sustentável. Lembrou de Michael Pollan e Carlo Petrini? Pronto. A comida invisível precisa ter destino. E a gente descobriu uma iniciativa bacana para mudar esse contexto: Comida Invisível. Foto de capa deste post: Chico Castro. Post checado em 02 de março de 2021.

Nesta semana, foi aprovado, em primeira discussão na Câmara Municipal de São Paulo, o PL 581/2015. Ele foi elaborado pelo Comida Invisível, projeto parrudo da advogada Daniela Leite gestado em família (por assim dizer), numa visita à Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo). O que prevê a iniciativa? Combater "o desperdício de alimentos na cidade de São Paulo, obrigando os estabelecimentos que atuam com alimentos, processados ou não, a encaminharem para doação qualquer alimento que ainda esteja próprio para consumo. São aqueles alimentos que não são colocados à venda, porque estão esteticamente feios, com pequenos machucados, próximos da data de vencimento, ou qualquer outro motivo, e acabam no lixo". Fomos atrás do início dessa empreitada e conversamos com a Daniela. 

Ah! Antes. Dados. Mais? Informações. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), cerca de 1,7 bilhão de toneladas de comida própria para consumo vai para o lixo todos os anos - no mundo. Essa quantia equivale a cerca de 30% de toda a comida produzida no planeta. Aquele um terço. Aquele "não faz sentido". E, pasmem, o Brasil figura entre os top ten do "pera aí, sério?" do ranking do mau exemplo. Em média, 30% dos alimentos pós-colheita, no caso dos frutos, e 35%, no das hortaliças, se perde. Milhões de toneladas, anualmente. Coisa de 15 milhões de toneladas... Sabe aqueles dois quilos de lixo produzidos todos os dias por você? Parte está lá (e qual o motivo mesmo?).

Buenas! Além de empunhar a bandeira do "vou fazer alguma coisa pra mudar esse contexto" e mexer seus palitos, configurando o PL, Daniela está no encalço de investidores para botar na rua um Food Truck de comida invisível. Serão comercializados alimentos supimpa (e repletos de sabor) com o que é ignorado pelo varejo/ consumidor. O lucro será usado para promover outras ações de conscientização. Ouvimos palmas? cheeky


Diálogos Comestíveis (DC) - Qual a sua formação e a por quê cargas d'água decidiu se envolver com a gastronomia? Pela sinopse do site do Comida (#Nós), a sua guinada se deu quando se tornou mãe. É isso mesmo?
Daniela Leite (DL) - Sempre que tenho que preencher aquelas fichas da Embratur, que pedem a profissão, digo que sou astronauta, pois atuo com um universo de coisas conectadas (a gente achou essa resposta genial). De formação acadêmica, sou advogada. Sempre adorei a cozinha e os alimentos. Cozinhar talvez seja a mais linda forma de distribuir amor. Já me aventurava na cozinha antes de ser mãe, mas meu filho me ensina muito, sempre!

DC - O que é, afinal, o Comida Invisível? Um projeto? Quando surgiu a ideia e em que pé essa história está?
DL - O Comida Invisível surgiu de uma indignação, em fevereiro de 2015. Fui com meu filho na Ceagesp comprar frutas mais maduras para fazer geleia e nos deparamos com um enorme desperdício. Pilhas de frutas jogadas nas caçambas ou em frente dos boxes. Naquela tarde, mais do que escolher os alimentos que fui ali comprar vi, senti e entendi a quantidade de comida que nosso Brasil – imagine o mundo - é capaz de produzir com qualidade. Simultaneamente, senti a fome de milhares de pessoas ao ver o desperdício de toneladas de alimento em direção ao lixo. A dor do desprezo e da carência tomaram meu corpo – e a mente. Entre as compras e o descarregar em casa, comecei a conceber o projeto com o qual, Flávia e Sérgio, também foram tocados.

"Senti a fome de milhares de pessoas ao ver o desperdício de toneladas de alimento em direção ao lixo". Daniela Leite, do Comida Invisível.

DC - Bora falar sobre conexões?
DL - Nós vivemos em um mundo complexo e plural. A vida pode ser vista de múltiplos pontos de observação e, a partir daí, vivemos esses dias construindo o que no momento é uma possibilidade: a abundância. Fartura de alimento na mesa de todos, mais terra para o planeta respirar, melhores condições para o homem no campo, práticas mais sustentáveis e redução do desperdício do alimento. 

DC - Logo, há uma missão encampada, consciente e madura, no Comida!
DL - Estamos na largada de um projeto de conscientização e educação imbuídos de um ideal para que o homem não abra mão de sua dignidade humana, deixando-se arremessar como se fora um objeto e não um sujeito de direitos. Cientes que essa história tem uma longa jornada, nos sentíamos divididos em relação a qual seria a solução correta. E ali, em nosso primeiro encontro, nós estabelecemos que para quem escolhia viver no mundo, a regra seria o entendimento de que  a vida pode, sim, ser vista a partir de múltiplos pontos de observação. E de que o refinamento deste ato – o de observar – está na multiplicação das boas práticas para se viver a abundância e o entendimento que uma boa causa pode proporcionar a todos.

DC - Seu discurso e apaixonante. O nosso, se alinha ao seu. Diga mais!
DL - A escritora Anais Nin diz, “nós não vemos as coisas como elas são, nós as vemos como nós somos”. Para viver uma vida boa, uma vida completa, cada um deve procurar o bem, o correto e o justo”. Sem presunção ou arrogância. Sem desconsiderar o outro. O ponto central não é lutar por uma razão. A vida é saber levar. O modo como se pensa, fala e age faz toda a diferença. Os tempos modernos estão difíceis. É impossível esconder a sensação de que há espaços no mundo em que o mal venceu. Porém, a história da humanidade demonstra o contrário. Apesar de acontecerem tantas coisas tristes e erradas não nos dispensa de procurarmos agir com integridade, amor e  respeito ao próximo de forma virtuosa.

DC - Da espinha dorsal do Comida Invisível. Missão?
DL - Nossa missão é acabar com o desperdício de alimentos e colaborar com a redução de resíduos que geram impacto ambiental. O fim do desperdício pode representar o fim da fome no mundo. Não há falta de comida, há desrespeito com o que se produz. A educação é um dos pilares do projeto e fomentamos a  conscientização através das ferramentas e canais digitais do Comida Invisível, levando para todos um novo olhar em relação ao consumo e desperdício de alimentos. De uma forma didática, leve e divertida, informamos às pessoas sobre os dados de desperdício no Brasil e no mundo.

DC - Este, sem dúvida, é um ano de crise. Captar recursos para a viabilização do Food Truck de forma colaborativa/ coletiva foi uma solução mais sustentável?
DL - A arrecadação vive um momento muito  especial. Além de solicitar o capital para o projeto, notamos que estamos despertando a atenção para o tema e colocando todo mundo em contato com um assunto "novo". A mobilização das pessoas é necessária. E nem todos estão cientes do que é desperdício. Divulgamos no Catarse uma parceria que fizemos com a Brasil America Truck e já conseguimos reduzir expressivamente a necessidade  de arrecadação.


É preciso pensar sobre o caminho, o meio e o fim dos alimentos. Por que não comer tudo, até as folhas da cenoura? Foto: Diálogos Comestíveis

 

DC - Em relação à comida que seria desperdiçada e poderia ser melhor utilizada, há uma série de questões, nem tão simples assim de serem respondidas, que pairam sobre as leis em vigor no país. Noutras palavras, doar alimentos ou reaproveitá-los resvala numa questão burocrática. Fato?
DL - Não há proibição para a doação. Os estabelecimentos não o fazem em razão da responsabilidade civil. Se alguém passar mal em função da comida doada, eles serão responsabilizados. Essa responsabilidade é a mesma do produto adquirido. Mas, nesse caso, é o risco do negócio, por isso assumem. Se tomamos os devidos cuidados com a seleção dos alimentos, preparo, conservação, não há problema.

DC - Como foi o caminho da elaboração do PL 581/15 apresentado à Câmara Municipal de São Paulo?
DL - Estudando o desperdício e todas as suas consequências, analisando a Política Nacional de Resíduos Sólidos e a Lei Orgânica da Assistência Social, bem como iniciativas fora do Brasil que tocam o tema, me veio a ideia de um Projeto de Lei para combater o desperdício. Apresentamos para o vereador Ricardo Young (Rede Sustentabilidade), que encampou a ideia (PL 581/15). O projeto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, em primeira votação em todas as Comissões reunidas. Está em votação popular com 95% de aprovação até agora. (e foi aprovado nesta semana, em primeira discussão). Esse projeto tem dois pilares: o correto destino e a educação. Todos que comercializam alimentos e tem sobras (alimento bom, próprio para consumo) devem dar o correto destino para ele, que não é o aterro sanitário. Além disso, acreditamos que a educação para consumo consciente e combate ao desperdício também devem ser realizados por quem comercializa os alimentos.

Infográfico do PL do Comida Invisível
 

DC - Quem vai cozinhar no Comida Invisível? Já pensa em parceria com chefs?
DL - Temos uma chef que já trabalha bastante com reaproveitamento integral de alimentos, mas a ideia é convidarmos outros chefs também para fomentar o diálogo em torno da causa. Todos unidos para combater o desperdício!

DC - Bacana!  E há projetos legais, como o Satisfeito e o Gastronomia Responsável (Fundação Boticário). O que acha deles e das iniciativas do Slow Food (como o Disco Xepa)?
DL - Acho iniciativas incríveis, ultra importantes para o despertar da nossa sociedade! Apoio e admiro todas elas!

"Para nós, a raiz do desperdício está no fato de que perdemos a conexão com a natureza. Nos tornamos controladores - e não parte dela. E isso muda o nosso referencial de vida". (Daniela Leite, do Comida Invisível)
 

DC - O Comida Invisível também produz conteúdo - conta com dois jornalistas atuantes nessa toada. Vocês pretendem ampliar esse projeto no futuro? Diálogos Comestíveis se dispõe a ajudar!
DL - Sim, temos várias frentes de atuação. Além das ações de conscientização online, participamos de eventos e palestras. Distribuímos geleias com maçãs doadas por um permissionário do Ceagesp que seriam desperdiçadas para apresentar à sociedade a qualidade, o sabor e a possibilidade de um fruto próprio para consumo, mas que seria descartado. Atualmente, estamos em campanha de financiamento coletivo para viabilizar o Food Truck do Comida Invisível que, mais do que oferecer comida, pretende colocar as pessoas em contato com essa questão para fazê-las pensar no assunto e entrar em contato com soluções simples para reduzir o desperdício. Realizamos uma pesquisa em parceria com a Sax Costumer Experience Specialists sobre o comportamento do consumidor e formas de lidar com o alimento próprio para consumo que seria descartado. Em breve, vamos divulgar essa pesquisa. Também estamos desenvolvendo uma ferramenta tecnológica para os supermercados e seus clientes, em parceria com a Orion Informática, que irá auxiliar nessa jornada rumo ao desperdício zero.

DC - Estamos no prólogo do projeto, mas já caminhando à visibilidade da comida. O diálogo prossegue, portanto!
DL - A reeducação de valores, o entendimento do consumo consciente e o contínuo diálogo com a sociedade civil estão em nossa pauta diária. Acreditamos que a conscientização, a informação e a mudança de pequenos hábitos têm um enorme poder de transformação. Para nós, a raiz do desperdício está no fato de que perdemos a conexão com a natureza. Nos tornamos controladores - e não parte dela. E isso muda o nosso referencial de vida. Nos enxergamos como dominadores, controladores e embrutecemos. Um alimento passou a ter a mesma importância que um carro, um tijolo, um celular. Virou commodity (mercadoria). E, assim se tornando, perdeu o seu valor maior, o sagrado, aquilo que nos nutre e dá vida. Somente uma reconexão com esse sagrado, que nos faz voltar no tempo, entender nossos ancestrais e compreender sua real importância e a forma através da qual nos relacionarmos com os alimentos é que nos ajudará a solucionar o problema.

 

PARA PENSAR MAIS


O chef "número 1" do mundo cozinha, também, com o que é invisível. E você? Foto: Divulgação

 

É claro que há iniciativas assemelhadas por aí. Vide o projeto Sesc Mesa Brasil (falamos disso na reportagem que fizemos com o Sérgio, da Calusne Farms). Da ONG Banco de Alimentos. Da Europa como um todo, com seus mercados sustentáveis e etc. E, mais recentemente, o do estrelado chef Massimo Bottura (Osteria Franciscana, eleito o melhor do mundo pela revista britânica Restaurant).

Esse cozinheiro anda lidando com o estranhamento de uma fatia de mercado brasuca. E achando graça, claro! Trata-se de um desafio de mudança de cultura, ecco! E sabe disso desde quando assinalou, publicamente, que cozinhará no Rio de Janeiro, ao lado dos maiores chefs daqui (destaque a David Hertz, do Gastromotiva) e da gringa, no ReffetoRio Gastromotiva - um restaurante onde as sobras de ingredientes da Vila Olímpica (sim, que iriam para o lixo) serão usadas para alimentar pessoas em situação de vulnerabilidade social.

A iniciativa é inspirada e vai funcionar na mesma toada do Reffetorio Ambrosiano, instalado no subúrbio de Milão durante a Expo Milano em 2015, criado pela ONG Food for Soul, de Massimo Bottura. Quer saber mais? Leia essa reportagem do Paladar, do Estadão.


É DE LEI


Você pode também dar a sua opinião sobre o PL 581/2015 no site Vote na Web. O texto ainda será votado em segunda discussão na Câmara Municipal de São Paulo e depois seguirá para a sanção do prefeito. Quer levar a iniciativa pra sua cidade? Inspire-se!


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