Pantaneiro bom de boca, Paulo Machado cozinha com o mundo

Enquanto editávamos esta entrevista, Paulo Machado (Instituto Paulo Machado) encerrava mais um rolê da Brasil Food Safaris, desta vez, pelo Sul país, ao lado de bambas do fogo de chão, como Marcos Livi. Antes de explorar a cultura sulista, fora de pesquisa e aulas de gastronomia na Ásia - passou por lugares como Singapura, onde cozinhou para embaixadores de diversos países; e Bali, onde coube saber sobre o processo de produção pitoresco café Civeta (Kopi Luwak). Entre os dias 5 e 6 de maio, estará em Porto Alegre levando a cozinha pantaneira ao Festival Fartura, projeto bacana idealizado por Rodrigo Ferraz. Vive entre voos e fronteiras. E não para. Entre destinos, escritos e sambas-enredo, ponderou uma trégua para dialogar conosco. Por agir mais do que falar (embora seja um comunicador dos bons), nos é caro.

No Fru.To, nos vimos. Acenara, ali, que estava aprontando mais um tanto de novidade.  Pois pode ser que, muito em breve, retome seu canal no YouTube (pelo Instagram Stories, fica claro o quanto ele gosta das lentes e das histórias). Pode ser que, em breve, passe a falar mais sobre a cozinha brasileira que conhece, mas em bom inglês, na TV. Está em fase de finalização de dois livros de cozinha pantaneira - um deles será lançado na 25ª edição da Bienal Internacional do Livro de São Paulo, em agosto.

Estudioso e defensor da cozinha pantaneira, Machado ciceroneia viagens pelo Brasil e pelo mundo com a Brasil Food Safaris, desde 2013. O projeto que é dele, advogado e mestre em hospitalidade, com passagens por restaurantes do Brasil e exterior; e da turismóloga Polliana Thomé. Visa a promoção de destinos sustentáveis, dos saberes e sabores locais, de receitas ancestrais, das culturas tantas que constituem os caldos de cada rincão de Brasil. Em 2017, a proposta ganhou o prêmio Inovação Turismo Inteligente (Braztoa e Sebrae).

O Instituto Paulo Machado precede a iniciativa e tem um quê de fundamentação teórica e chancela. Situa as pesquisas do cozinheiro e abarca iniciativas parceiras diversas, boa parte delas conectada à lógica da gastronomia sustentável - termo que Machado conjuga, sem tanta firula. Confira, a seguir, a entrevista que fizemos com ele.

 

Paulo Machado e a linguiça de Maracajú
O cozinheiro sul-matogrossense e a linguiça de Maracajú, única com selo de indicação geográfica, pelo Sebrae. O nome do embutido alude à cidade homônima, distante cerca de 160 quilômetros de Campo Grande (MS). Ele é feito com carne bovina picada na ponta da faca. Moída, jamais. Fotos: Instituto Paulo Machado.

 

 

Diálogos Comestíveis (DC) - As pessoas o confundem com Paulo Martins, saudoso? O que acha disso? Risos!
Paulo Machado (PM) - Maravilhoso ser quase homônimo de figura tão ilustre. Mas, na verdade, fazem mais confusão com o Paulo Coelho, o mago, risos. Acham que sou neto dele por conta do meu nome completo: Paulo Coelho Machado Neto. De todo modo, sou neto de um escritor também; no caso, o historiador Paulo Coelho Machado, que também dá nome a minha empresa: o Instituto de Pesquisas em Alimentação Paulo Machado.


DC -  "O homem é majoritário por excelência, enquanto que os devires são minoritários, todo devir é um devir-minoritário. […] Maioria supõe um estado de dominação” (Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mil Platôs). Pensando em filosofia, e no devir de um cozinheiro de fato (gastrônomo, multidisciplinar, pesquisador, preocupado em ser coprodutor e modificador de contextos, como sugere Carlo Petrini): como foi o seu devir-cozinheiro? Ou - o que o levou a cozinhar
PM - No meu caso, foi algo natural. Sou muito curioso, principalmente com o que desperta sentidos. Desde criança, acompanhei os processos que envolvem fazer comida. Movido por essa curiosidade e, também, pela gula, sempre fui apaixonado por comida, por combinações. Minha mãe conta que, desde pequenino, tinha mania de misturar comidas que sobravam, quando íamos a restaurantes. Na fase adolescente, sem saber muito o que estudar, fui buscar uma carreira e meu avô, Paulo Machado, advogado, sugeriu o direito. Como não via outras possibilidades, acabei cursando. Lá pelas tantas, já vi que estava no caminho errado. Enveredei por muitos recantos. Jovem, estudante, morando em São Paulo, namorei cinema, teatro. E foi nessa época que resolvi procurar emprego numa cozinha, para ver qual era. Só que acabei entrando no salão. No caso, do extinto restaurante Julia Cocina, da talentosíssima chef Paola Carosella. Depois, fui trabalhar de ajudante de cozinha nos Jardins. E, foi ali, que a brincadeira ficou séria. De lá pra cá, são 13 anos na área de alimentação e hospitalidade.

DC - O conhecimento em direito ambiental lhe ajuda, hoje, a contornar certos nós da gastronomia brasileira?
PM - Certamente. Uma das coisas mais interessantes que entendi quando estudei Direito é que nosso país possui um Código Ambiental que é modelo internacional, respeitadíssimo. Estão lá receitas para a preservação de biomas, áreas de preservação permanente, reservas legais. Proteção que é aplicada em todo o Brasil. Caso contrário, as sanções e multas são altíssimas. Essa preservação, combinada com propriedades produtivas, geram riqueza e diversidade para a alimentação brasileira. No Mato Grosso do Sul, por exemplo, num passeio pela zona rural, você consegue identificar muito além das culturas da pecuária e agricultura que, hoje, se apresentam parceiras graças às pesquisas da Embrapa. As reservas legais das propriedades estão lá: guavirais, cumbarus, buritizais, guabirobas, pés de pequi e toda sorte de biodiversidade preservada.


DC - Há algum projeto de lei que tenha sugerido em conjunto aos demais cozinheiros brasileiros para modificar a maneira como o consumidor se relaciona com o alimento?
PM - Hoje, o
Slow Food, movimento ao qual sou ligado, mostra caminhos por meio da Arca do Gosto e da Aliança dos Cozinheiros. As conexões são naturais. O Instituto Paulo Machado está trabalhando com o Sebrae para dar voz aos produtos de indicação geográfica. Temos ótima comunicação com a APEX Brasil e com órgãos ligados ao turismo. E, sem dúvida, participamos da agitação de assuntos da vez e que carecem de regulamentação, caso dos queijos de leite cru, meles de abelhas nativas, embutidos artesanais e da colher de pau, para citar alguns.

DC - Estou investigando a relação entre o consumidor de informação e o produtor de informação no Brasil. Vivemos um período transacional no jornalismo, na última década - os veículos "oficiais" dividem a rede de atenções diminutas com milhões de produtores de conteúdo. E, justamente, a partir do momento em que a gastronomia tem seu "boom" no Brasil (a partir dos anos 2000, com a internet, o início do curso de gastronomia na Anhembi Morumbi, em São Paulo, e os reality shows culinários), vimos a proliferação de fake news, de boataria. E, aí, se multiplicaram reportagens sobre as dietas da moda, os "novos cozinheiros", as modas do comer. O que você pode argumentar em relação a essa análise inicial?
PM - A velocidade das mídias eletrônicas é avassaladora. Tem aspectos super positivos. Ao mesmo tempo, me amedronta o processo de pasteurização da informação.

"Muitas vezes, um "fato" da "Wikipedia" acaba se tornando verdade absoluta. Isso é muito perigoso. Por isso que eu acho que livro não vai acabar, pelo menos os de gastronomia. São os registros mais seguros aos quais temos acesso".


DC - Que veículos de informação gastronômicos (quer sejam grandes ou pequeninos, quer locais ou internacionais) e profissionais (cozinheiros ou comunicadores sociais) você costuma ler/ assistir/ ouvir?
PM - Hoje, o Instagram virou uma mania. Não sei até quando será mania. Adoro seguir restaurantes na Ásia e ver o que eles estão fazendo e servindo. E sigo os restaurantes e os chefs que curto o trabalho no Brasil. Quanto à revista impressa, leio mensalmente a Revista Menu, da qual sou colunista. E assino a Prazeres da Mesa, que tem sempre boas matérias e receitas. No mais, como todo mês vou cozinhar em algum lugar diferente, sou rato de revistas de companhia aérea, que sempre trazem matérias de gastronomia. A maioria delas podem ser acessadas pela Internet.


DC - O que é "gastronomia sustentável" para você, hoje? Como você vê que a mídia trata essa "editoria"?
PM - É pagar o que se deve. Ter funcionários e clientes satisfeitos. Ser responsável por lixos e resíduos gerados pela sua empresa. Saber a que veio. O mínimo de conflito. Respeitar leis e o próximo. Cuidar pra se usar o mínimo de recursos naturais. Agir mais e falar menos. Entregar o que prometeu. Pra mim a sustentabilidade mora aí! Em geral, as mídias floreiam muito o termo e o colocam sempre de maneira utópica e inatingível. Sempre digo que o combinado não sai caro.


DC - Recente reportagem do jornal El País dá conta de que o nosso Cerrado, nossa Savana, tão biodiversa, está em risco de extinção. Como só miramos a Amazônia, nos esquecemos de que as tantas florestas que nos preenchem - e das quais fazemos parte -  podem estar bem próximas e findas. O Pantanal está colado ao Cerrado. Como você vê essa situação em relação à manutenção de sabores e saberes?
PM - Seguir as regras do código de defesa ambiental, seja no meio ambiente natural ou no artificial (urbano), é um caminho. Iniciativas como a de reflorestar com plantas nativas de cada bioma. A utilização e o cultivo das PANC, o manejo sustentável, a integração agricultura pecuária são, por exemplo, soluções reais e que estão ao alcance de quem lida com a terra. Nós, como transformadores de alimentos, e o consumidor final precisamos ficar mais atentos aos cuidados necessários para a preservação de um bioma, aprender com os agricultores todas as dificuldades de cultivar alimentos e, assim, trazer respostas reais e condizentes com a urbanização, globalização e interdependência dos quase 7 bilhões de seres humanos que ocupam este planeta.

"Situações míopes, destorcidas e extremamente utópicas só levam ao desgaste do diálogo. Precisamos compreender qual a melhor maneira de utilizar a nossa terra sem que os recursos acabem. A figura do mateiro (especialista em ervas da selva) é fundamental nessa seara".


DC - Seu trabalho é, também, no sentido de promover a cozinha brasileira e a cozinha do Estado em que nasceu. O que pensa em fazer para que a Cidade Morena não se aparte da defesa de sua biodiversidade e de sua gente?
PM - Continuar estudando e divulgando o complexo sistema alimentar do qual faço parte. Que está entre o Pantanal e o Cerrado. O Mato Grosso do Sul, as fronteiras com Paraguai, a Bolívia e outros Estados do Brasil. As serras, a planície, Campo Grande. Toda essa rede é extremamente viva, frágil e muda com facilidade. O olhar e o registro desta riqueza são uma forma de preservação para as presentes e futuras gerações.

DC - Curioso. Você é extremamente conectado e realmente um cidadão do mundo. Seu site, porém, estagnou-se em 2012. Por quê? As redes sociais são mais eficazes e, por isso, dissipa seus conteúdos, de forma mais efêmera, por meio delas? 
PM - Exatamente. Considero as redes sociais mais rápidas e dinâmicas. Tudo o que envolve o site tem custos mais altos, dá muito mais trabalho e resultados menos aparentes. Como minha equipe no Instituto é enxuta, nós ainda não tivemos tempo de melhorar a comunicação no site. Mas isso não quer dizer que esta não é uma meta para os próximos anos. Um novo site com a publicação das nossas pesquisas está em nossos planos.

DC - Pode confirmar os veículos com os quais contribui, atualmente? O que há de projeto de produção de conteúdo guardado aí que possa adiantar/ comentar?
PM - Sim! Participo de várias frentes de divulgação do meu trabalho. Atualmente, tenho uma coluna mensal na revista Menu, chamada Terra Estrangeira e sou colaborador no site Comer e Beber MS, além de colunista de gastronomia semanal na rádio CBN Campo Grande. Estou com um projeto de retomar meu canal pessoal no YouTube unindo os registros que faço nos Food Safaris e estou em contato com uma produtora internacional para um programa de TV em inglês, para um futuro próximo. Além disso estou trabalhando em dois livros de cozinha pantaneira. Um deles, em versão pocket, será lançado ainda este ano, na bienal do livro, pela editora Sesi.

 

 Ao lado de Machado, alunos aprendem mais sobre a cozinha do Pantanal, em uma das edições da Brasil Food Safaris.
Ao lado de Machado, alunos aprendem mais sobre a cozinha do Pantanal, em uma das edições da Brasil Food Safaris.

 

DC - Que receita ou ingrediente de seu rincão poderia lhe cair como tempero (ou sinônimo)?
PM - Pequi! Pequi! Pequi e guavira. Tem também o jatobá e a bocaiuva. Exemplos de sabores que ainda precisam ser mais explorados pelos cozinheiros do Brasil.


DC - Que chef internacional, entre tantos que já conheceu, mais o surpreendeu quando você apresentou a ele algo além de uma feijoada com caipirinha?
PM - Gostei muito de ter levado a linguiça guarânia para os chefs internacionais que participaram do Mesa Tendências, em 2016. Um deles, o chef Michael Katz, de Israel, levou a linguiça bovina pra Tel Aviv e preparou um prato com ela. Depois, me convidou para dar uma aula na escola onde trabalha em Israel, no ano passado. Preparei moqueca com ingredientes kosher, foi divertido.


DC - Falta à academia (gastronômica) publicar mais sobre as suas descobertas acerca de todo o percurso da criação de um prato (do campo à mesa, portanto)?
PM - Sim. Faltam muitas publicações. No entanto, o mercado editorial está em crise. Sinto isso pois estou há anos tentando publicar meu livro de cozinha pantaneira e ainda não consegui. Entendo, no entanto, que este mercado irá migrar para outras mídias. Ainda estamos vivendo este momento de transição. Vamos aguardar.


DC - Não poderia deixar de perguntar sobre o desfile dos cozinheiros no Carnaval deste ano, na Sapucaí, capitaneados pelas pesquisas da chef Flávia Quaresma e graças ao mote sugerido pelo carnavalesco Severo Luzardo para a União da Ilha. Aos 20 anos da formalização da academia de gastronomia no Brasil, o que representa aquele samba? 
PM - Foi um grito de: Hei! Brasil!! A cozinha brasileira existe! E o momento de reconhecer isso é agora. Emancipamos!

 

 

 

 

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